Andei lutando contra a medicação hipnótica, era certo não querer dormir dopada todos os dias, mas não consigo dormir comigo mesma uma noite sequer sem que minhas tormentas tomem conta de mim e me alaguem a cama e eu acorde várias vezes durante a madrugada com os pés úmidos e frios.
Eu sinto meu corpo tremer ao som das memórias distorcidas que invadem minha mente inquietante. As memórias são infinitas! Logo eu que sempre tive tanta dificuldade em lidar com esses termos improcessáveis a mente humana: a ausência e a presenta em estado permanente. O mais próximo que posso chegar antes que eu mesma me desminta é que infinito é isso: presença e ausência em densa e profunda profusão.
Quando eu estou dopada, o mundo fica em outro estado, ou talvez eu é que fique,
does'nt matter, pois é íncrivel como o desencaixe entre mim e o mundo me torna mais levitante e tudo faz mais sentido: eu não sinto mais onde eu deveria sentir, eu só deixo a cabeça pender, de lá pra cá.
Há exatos três anos minha avó morreu, e tenho certeza de que ela morreu uma porção de vezes enquanto estava viva, enquanto dizia à mim que queria ter sido professora, ou como adorava suas pérolas falsificadas, de nada elaborado eram seus esconderijos e suas fantasias, ela punha a chave de casa no sutiã, ali ninguém mexeria e ela também não perderia. Ainda posso ouvir o barulho do portão se abrindo, era arrastado e pesado e tínhamos que pender o corpo para um dos lados, sempre.
Logo ali, por volta dos meus dez anos quando fomos embora da casa dela ela começou a morrer. Definhou não tão lentamente quando aos meus quatorze ela teve que ir morar em outra cidade, solitária e contrariada. Não havia muito que podíamos fazer, não é vovó? E hoje eu sinto muito por tê-la deixado ir. Ela perdeu sua casa, e eu perdi as paredes que seguraria o que hoje eu guardo na lembrança, sem chão, sem suportes, sem teto, e assim, fica tudo solto aqui dentro.
A cabeça dela não aguentou a dor da solidão, das vivências e das cicatrizes tão mal cicatrizadas, a cabeça dela não aguentou uma vida inteira de fuligem do fogão, do cansaço da força bruta, e de ter perdido as flores que ainda brotavam no quintal. Eu lembro como se fosse hoje do quintal e das plantações de morango.
Pois vovó se fez em degeneração pouco depois de ir embora da cidade, e começou a ir embora de nós, fechou-se em seu mundo, que daqui, numa breve suposição, eu diria, ser esse, um mundo acalentado pela fuga e insustentável pela solidão. Das piadas e risadas pra aguentar o fardo logo surgem as primeiras reais preocupações: vovó não é pessoa pra esse mundo, agora usa fralda, fala coisas sem sentido e não reconhece seus amores. Ela cai, ela se machuca e não consegue pedir ajuda, ela quis a vida toda morrer em sua casa, cercada daqueles que amava, e morreu sozinha de conhecidos, no chão de um quarto recém alugado. Parada cardio respiratória. Simples assim.
Talvez ela, e só ela, dessa vez possa me dizer do que é composto o infinito, como o calculamos e quanto medo ele realmente dá.
Só depois que a enterramos, depois de passado todo o choque inicial é que começamos a arrumar suas coisas, e lá estava o clonazepam de 2 mg, que eu nunca a vi tomando, mas sei que ela tomou até seu último dia de vida. Tento ainda não passar do 1 mg, mas aos vinte e seis anos já me parece difícil não pedir um pouco mais, suponho que aos setenta e tanto também lhe parecesse.
No dia primeiro de janeiro do ano de 2014 ela sorriu pra mim e então eu pude reconhecê-la pela primeira vez depois que a doença tomou conta, ela sorriu e disse palavras que eu, em falsa sanidade, não entendi. Talvez ela falasse de amor, ou apenas de alguma plantinha que ela podia ver através da janela.
Há quem acredite que ela ainda fale comigo, por sonhos, telepatia, energia ou qualquer uma desses canais que a ciência caçoa, mas não me importa, o que eu tenho certeza é que eu ainda falo com ela, e digo todas as vezes que posso, que na geração que me fez tua neta, eu honrarei nossa genealogia matriarcal.