segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Carta aos 28

É assim que vem a lembrança: sem previsão, arrombando a porta, inundando os olhos que não estão preparados pra enxurrada.
Te trouxe pra mim em fevereiro de 2008, isso eu não esqueço, acredito que nem você. Cada detalhe daquele dia que parou o tempo está tatuado em nossas almas, e que fiquei aqui, é parte de mim, tudo bem.
Mas hoje, quando eu lembrei que é seu aniversário, me veio a arrebatadora lembrança da gente dançando com as mãos, nossas risadas ao perceber que seus gestos eram mais grosseiros que os meus. Ficávamos longo tempo brincando de dançar com as mãos e nossos olhares vagando entre os dedos e o teto, eram como grandes iluminadores, eu podia sentir o mundo refletido, desdobrado. Há quem diga que tudo isso é muito triste, talvez seja, mas apesar do susto, quando eu lembro do que fizemos com a simplicidade dos nossos movimentos, como fomos capazes de amar os mais breves segundos, eu sinto alguma paz.
E foram nesses momentos tão sublimes que me fiz tão inteira ao teu lado.  Eu sei que você atravessaria o mundo pra me amar naquele nosso tempo, eu sei que você me protegeria de qualquer tormenta e faria do inferno um ninho confortável pra que eu dormisse sem medo. Eu sei de todo amor que você não só sentiu, mas vibrou, pulsou, criou por mim.
Você é alma colhida em campo de flores raras, é eco de amor num mundo vazio.
E que a beleza sutil das mãos dançantes possa ser multiplicadora como ondas sonoras.
E que nesse movimento minhas palavras sussurradas atravessem a cidade e preencham teu coração: que aquele amor que hora feriu tanto possa ser também cura pra que um dia eu possa convidar tua mão direita pra dançar de novo.
Será que somos melhores dançarinas hoje?

Feliz 28, feliz recomeço.
Te amo, bê.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Filha de Oxúm

Nossos corpos entrelaçados 
lançados, laçados aos céus
enquando sua voz sussurada 
num quase ritmo desconhecido
me arranca um olhar aguerrido

O mundo se faz esvaído
quando me retorço no teu dorso
ainda que a tempestade ácida
repita a saga das árvores ocas
tudo lá fora se faz mudo


E num impulso d'alma, eu digo
Vem!

que na tormenta das águas turvas
das correntezas das tuas curvas
filha de Oxum não afunda




quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Mentiras

Que a mentira venha a galope enquanto eu tento de todas as formas desenhar nossos corpos nús.
Que teus olhos tão acesos e imensos ludibriem os meus enquanto eu cuido pra que nada nosso desbote.
Que enquanto você fala o que tua alma nem sabe o que sente eu bote tudo no lugar por nós duas.
Nosso alimento: meu e seu
Nossos sustento: meu e seu
Nossa sede: minha e sua
Que você mantenha a fumaça dessa erva daninha, danosa, nos pulmões, enquanto eu adubo essa terra infértil e faço a estrutura pra subir as paredes que vão sustentar as tuas mentiras.
Eu achava que eu era tão minha aos dezessete, como você acha que é.
Eu perdi tudo, das minhas roupas a minha identidade, achando que aquelas mentiras eram as minhas maiores verdade.

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

A busca e a fuga

Você sempre teve que ir embora correndo: um telefonema, um compromisso, uma mentira mal contada. Eu mal lembro dos detalhes além daqueles vividos nas madrugadas, nas empreitadas de um amor clandestino, mesmo que dentro de nós mesmas.
A primeira vez que eu sorri pra você, eu sorri pro infinito, e o infinito é amedrontador.
Eu estive sempre correndo pra te encontrar, na esquina de uma avenida qualquer, num bar improvisado, no portãozinho da sua casa, no terminal de ônibus.
Eu mantive a busca e você a fuga. Eu me busquei o tempo todo nos teus olhos enquanto você fugia dos meus, eu busquei cada pedacinho do seu corpo enquanto suas mãos estavam intactas, eu busquei você em cada árvore de galhos secos ou de galhos recheados de flores de algodão, enquanto você fugiu de todo encanto, olhou nos meus olhos e disse que não queria mais ficar comigo.
Isso tudo nos define muito bem, eu vou continuar minha busca por mim mesma, mesmo que nas sutilezas sublimes que a vida nos traz a tona e você vai continuar fugindo de si, se anestesiando e acreditando que foi melhor assim.
E tudo se transforma num grande desencontro separado por frames de segundo, com cheiro entorpecedor de amor mal vivido e cigarro barato.

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Ampulheta

Eu sinto você se desfazendo, escorrendo, virando poça.
Esses prédios não estavam aqui a última vez que me afoguei no amor, hoje eles reluzem destruição. O que antes era um apanhado de concreto fétido e esburacado, se transformou em arranha céus onde entram e saem os homens de terno.
Terna era minha mão na dela, a gente foi gigante, e o mundo, que eu sinto me engolir e me cuspir num movimento incessante, era nosso.
Eu amei de novo, na metade do século, em meio ao trânsito de plutão, com os pés encharcados da poça formada pela chuva ácida. Mas eu te beijei, com os pés enrugados mesmo, com frio mesmo, com medo mesmo, e eu te beijei num furor de quem sabe que uma década mal completada pode virar nossas cabeças e nos puxar  pelos pés pro núcleo da terra enquanto a cabeça voa pro céu avermelhado da metrópole.
A gente sabe que vermelho é poluição, que fumaça é tóxica, que a mentira é dor indissolúvel, e mesmo assim o céu é lindo, a fumaça é alívio e a mentira é escape.
Todos os dias eu te arranco um pouquinho de mim e todo santo minuto eu te peço em silêncio pra voltar e não deixar que eu termine o trabalho árduo de me esvaziar de ti.
É como uma ampulheta de areia fina que se esvai pouco a pouco pra nos mostrar na concretude que o tempo acabou.

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

me arrebenta o coração

ainda sinto o cheiro do desejo antes de te beijar
e me lembro do medo de te deixar entrar
de nada adiantou você me puxou pro seu olhar
e tirou minha alma pra dançar

me arrebenta o coração, diz que não pode mais ficar
me arrebenta o coração, diz que não vai mais voltar
que é pra ver se eu desato o nó
que é pra ver se o amor vira pó
e voa, entoa nosso som pra eu cantar

se distraia mais com o vapor do café
que daqui eu prometo eu mantenho tudo em pé
descasa teus olhos dos meus pra ficar mais fácil dizer adeus

me arrebenta o coração, diz que não pode mais ficar
me arrebenta o coração, diz que não vai mais voltar
que é pra ver se eu desato o nó
que é pra ver se o amor vira pó
e voa, entoa nosso som pra eu cantar


quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Arrebentamento

A crise se instaurou, não só a econômica ou a política, não só a social, não só toda essa instabilidade que vemos nas ruas do centro ou nos becos famintos, ela se instaurou na minha mente essa noite. E quando ela se instala aqui o mundo se faz pequeno e meu corpo fica tão grande que chega a ser claustrofóbico. Minha caixa torácica não me acompanha, ela se eleva e se retrai tão rapidamente que a luzinha do radio relógio parece lenta e incômoda.
A cabeça repete tudo, nada é digno de ser pensado apenas uma vez, nenhum pensamento se desfaz, tudo se acumula e dá voltas em mim, como o pássaro preto frenético em volta da minha árvore seca. O primeiro comprimido desce quase a seco : eu preciso que isso pare. O segundo comprimido é um pedido de socorro, e o terceiro se desfaz na boca que nem gosto mais eu consigo sentir.
Adormeço num choro lento, os sonhos me tomam a realidade, eu sonho com tudo. Sonhei contigo e de alguma forma eu sabia que era só um sonho, devo até ter mexido minhas mãos porque eu desejei tanto te trazer pro real, acordar e ver teu semblante sereno mergulhada num sono profundo.
A gente andava pelas ruas e o mundo parecia tão grande, eu lembro dessa simplicidade grandiosa, eu lembro do quanto eu desejei te roubar daqui, que teu sorriso é digno de florescer entre as árvores que beiram as águas de Oxum.
Essa cidade é tóxica para pessoas como nós, e eu não quero mais morrer aqui, eu não quero que essa insanidade consuma minha cabeça, eu quero ter esperança e uma hortinha. E talvez esperança e um punhado de plantas sejam exatamente a mesma coisa.
E estar mais do que apaixonada, minha querida, talvez seja só uma ilusão que a sua mente fértil criou pra ter uma imagem platônica pra se apegar.
Eu ainda queimo, incendeio por tudo aquilo que eu deixei passar, pelas palavras que eu não disse quando eu pude dizer, pelos abraços que eu não me demorei um pouco mais, porque eu amei e hoje eu sei que flores que brotam no asfalto não devem ser pisadas.
Hoje eu paro, olho pra elas e sorrio, é um milagre elas estarem ali. Alguns amores são um fenômeno tão bonito como as flores do asfalto, porém, na mesma proporção a gente passa por cima sem olhar a beleza que é brotar em terra infértil, contrariando a natureza das coisas.
Me arrebenta o coração tentar te entender, tentar compreender porque ir embora enquanto teus olhos dizem tanto sobre querer ficar Me arrebenta o coração distanciar nossos corpos enquanto eles nos pedem que demoremos mais nesse abraço, nesse enlace, nessa fusão de mundos. Ou talvez eu tenha visto flores brotando do asfalto como um oásis, e talvez eu tenha te engolido em efeito placebo, e talvez você tenha sido tão irreal quanto o vapor quente do café recém passado.
E eu não quero passar tanto tempo olhando fixamente para o que não foi, eu prefiro olhar pro céu azulado, tão cheio de nuvens branquinhas dessa tarde de cinco de outubro. O céu é intocável e as nuvens são dissolvíveis, e ainda assim, tão reais.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Você olhava pra mim com um olhar investigativo enquanto eu admirava a fumaça saindo da brasa do cigarro recém acendido. Eu pensava na beleza do que não é palpável, do que passa por nossos olhos e não fica. Eu pensava em nós.
No que você pensava?
Eu sempre tentei incansavelmente entender o que seus olhos me diziam, até que te ensinei a escrever com os dedos, na pele, no ar. Eu ainda o faço quando quero que minha palavras se desfaçam como a fumaça do cigarro.
Dentro do meu peito efusivo eu pedi um milhão de vezes pra que você ficasse, será que você não ouviu? Cada batida acelerada do meu coração era lembrança da saudade que ainda está por vir, e virá, eu sei: chutando a porta, arrancando os meus pelos, que cabelos já não tenho.
Mas depois é só acalmar a saudade num abraço firme, daqueles que minha mãe me dava depois de um surto de raiva na infância. Talvez eu vá precisar de um tempo pra concertar a porta, e aí sentar no chão com uma xícara de café e um cigarro entre os dedos. Quem sabe quando eu realmente conseguir te dizer adeus eu também não deixe de fumar.
Hoje acordei e o céu estava cinza, mas não fazia tanto frio assim, era só a coloração acinzentada cobrindo todo o horizonte: as cores cinzas também podem amornar o coração, obviamente que o café fresco ajuda nessa empreitada.
Você olhava pra mim num misto de compaixão e pedido de socorro, e eu olhava pra você num pedido contraditório de que desatemos o nó já que não conseguimos ficar com o laço.
E quando eu me distraí eu me apaixonei de novo por você, eu me peguei deitada no teu colo, no parte alta do half, longe de toda aquela gente que cantava, dançava e se mexia de forma estapafúrdia. E que me perdoe a poetisa portuguesa mas eu me apeguei a essa palavra: estapafúrdia.
Você me acariciou o corpo e a alma e eu te disse, não sei se ouviu, mas eu disse: ''Você me acalma tanto, é como se fosse outro mundo.''
Você não disse nada, só me envolveu eu seus pequenos braços com mais força e eu entendi que você sabia do que eu estava falando.
Eu matei o pé de hortelã, eu matei o tomilho e o manjericão, e há quem diga que eu só os deixei morrer. Eu quero deixar morrer a morada que você fez dentro de mim. E que se apague como se apaga um cigarro no asfalto. É que eu nunca jogo meu cigarro aceso, eu o apago até que a última faísca brilhante vire pó.