segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Ampulheta

Eu sinto você se desfazendo, escorrendo, virando poça.
Esses prédios não estavam aqui a última vez que me afoguei no amor, hoje eles reluzem destruição. O que antes era um apanhado de concreto fétido e esburacado, se transformou em arranha céus onde entram e saem os homens de terno.
Terna era minha mão na dela, a gente foi gigante, e o mundo, que eu sinto me engolir e me cuspir num movimento incessante, era nosso.
Eu amei de novo, na metade do século, em meio ao trânsito de plutão, com os pés encharcados da poça formada pela chuva ácida. Mas eu te beijei, com os pés enrugados mesmo, com frio mesmo, com medo mesmo, e eu te beijei num furor de quem sabe que uma década mal completada pode virar nossas cabeças e nos puxar  pelos pés pro núcleo da terra enquanto a cabeça voa pro céu avermelhado da metrópole.
A gente sabe que vermelho é poluição, que fumaça é tóxica, que a mentira é dor indissolúvel, e mesmo assim o céu é lindo, a fumaça é alívio e a mentira é escape.
Todos os dias eu te arranco um pouquinho de mim e todo santo minuto eu te peço em silêncio pra voltar e não deixar que eu termine o trabalho árduo de me esvaziar de ti.
É como uma ampulheta de areia fina que se esvai pouco a pouco pra nos mostrar na concretude que o tempo acabou.

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