quarta-feira, 10 de maio de 2017

Esvaziada de dor e de amor

Amor, prepara um chá de camomila com hortelã pra mim essa noite que mal consigo me levantar daqui. Ainda que aqui pareça tão vazio, ainda assim está morno e a lua redonda me prende na janela.
Senta aqui do meu lado, não olha pra mim, minhas cores estão desbotando pouco a pouco, e de vez em quando me lembra que o chá vai esfriar. Se quiser, segura de leve minha mão, nada pode ser muito forte agora, algo me segura na contradição da dor que se mantém como águas calmas.
Eu também sinto medo da solidão no apartamento quando a noite vem, mas eu não posso ter, e tudo vira uma grande apatia confundida com coragem. Não é só o apartamento que se faz esvaziado, meu olhar também, tudo está indo cada vez mais pro fundo, e na contradição certeira, tudo está tão raso.
As ruas são sempre as mesmas, os passos também, tampouco me importa caminhas metros ou quilometros, o que realmente me dói é acordar. Quando abro os olhos sinto meu corpo se partindo em vários pedaços, meus ossos doem, meu coro cabeludo dói, meu coração sente o frio incomodo que entra daquela janela que ficou aberta quando a ventania que antecede a tempestade inesperada chega.
Minhas guias continuam penduradas no quadro de recados pendurado na parede verde, assim como aqueles papéis inúteis, e o lembrete dos remédios que preciso tomar. Sempre esqueço a quantidade e acabo confundindo, dois de manhã, um a noite, e se não olho pro quadro logo estou tomando apenas doses de você.
Perto da Igreja de Santa Cecília tem uma pequena floricultura, eu queria ter te dado uma flor e ter te convidado para tomar um café no Góes te vendo sem saber o que fazer com a flor na mão. São tantas coisas: a vergonha, a flor, o café, minha mão direita e nossos sorrisos se encontrando no tempo mais presente, um tempo jamais estudado.
É estranho como sempre estivemos tão perto e tão imersas em nós todas as vezes em que estivemos juntas. Nada nos roubou nem um pouquinho de nós enquanto nos mantivemos de mãos dadas. Fomos intactas numa ligação inexplicável entre o amor e a terra. E então, antes que o ponteiro do relógio nos dissesse que era hora de nos encontrarmos, que precisavamos estancar o sangue que escorria sem que nem ao menos prestássemos atenção, antes que o ponteiro do relógio da Igreja de Santa Cecília soasse alguma meia dúzia de horas, eu pude sentir o vento gelado, e a despedida velada -  como eu odeio as coisas veladas- e a turbulência do avião: eu pude estar nas nuvens logo após penetrar teus olhos numa euforia jamais sentida antes. Eu apertei tuas mãos dentro do carro, e horas depois eu apertei o cinto, como me ordenou gentilmente a comissária de bordo. Estive entre as nuvens, pairando no ar, com enormes turbinas mantendo tudo sob controle.
São Paulo nem parecia tão caótica, suguei pra dentro de mim toda a caoticidade e cuspi enraivecida por todos os concretos que me cercavam. Eu quase não me vi chorar, tentei achar alguma estrela nesse céu apocalítico, e encontrei uma só, e ela me perguntou se eu sei a diferença entre um planeta e uma estrela, assim, a olho nu. Eu senti medo da resposta e mudei de assunto, nunca consegui perguntar a ela, sigo tentando desvendar por mim mesma o mistério dos astros.
Nada, não é nada demais, o chá já esfriou enquanto eu falava sem parar e te pedia desculpas por falar demais. Sigo desbotando, o vermelho já é pouco, um rosa alaranjado, talvez, até que vire qualquer cor identificável e você já não me reconheça mais, ou até que eu não consiga mais me mexer, e então, eu te peço: não me pinta de vermelho não, me deixa pálida, intacta, esvaziada de dor e de amor.

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